sábado, 10 de novembro de 2007

“Homem morto andando!”



(Variações para um tema de Kierkegaard)
por bjfranco (*)
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Qual um resquício da fatalista saudação dos gladiadores na Roma antiga, "Ave Caesar, morituri te salutant” (1), que chega até nossos dias, alguma forma de cerimonial costuma acompanhar aqueles que têm um tempo marcado e certo para o derradeiro encontro com as Parcas. Ainda hoje, nos Estados Unidos, nos lugares que aplicam a pena de morte, um ritual acompanha os condenados à morte, a partir do momento que encerra todas as chances jurídicas de suspensão da execução. Começam então alguns procedimentos: caso o condenado seja religioso, será acompanhado nos seus últimos momentos por um representante da sua religião, (um padre ou uma freira, se católico, um pastor, se protestante, etc.). Também terá direito a receber a última visita dos seus familiares bem como poderá escolher o cardápio da sua última refeição.
Mas existe uma contrapartida nisto, algumas prisões permitem a presença dos parentes das vitimas do condenado - vingança, doce vingança - entre as testemunhas da execução. Todavia não é este o aspecto do ritual que nos interessa, certamente há algo de estranho nesses “privilégios” e “concessões” de última hora, pois sobrepujando os agentes que concedem tal tratamento e o condenado que o recebe, existe um ponto tão comum quanto trágico: a certeza da morte que ocorrerá em alguns momentos mais.
Mas ainda não é (só) este o ponto.
O que realmente nos toca, é a parte do ritual que ocorre quando o condenado vai ser conduzido da sua cela até o local da execução, pois deste momento em diante ele passa a ser tratado apenas pela expressão “dead man” (2). É aí que o condenado morre antecipadamente, pois o nome – aquilo que nos conta entre os vivos - é algo que o condenado não tem mais, ele ainda não é tecnicamente, um morto, mas já é um “dead man”. Chegada a hora da execução o condenado levanta-se e um guarda da prisão, emulando o papel de arauto, anuncia: “dead man walking!” (3).
E o condenado caminha para a morte.
Mas não teríamos nós, (todos nós), algo em comum com o “dead man”? Mesmo que o sorites que conclui com o famosíssimo “todos os homens são mortais” só possa ser provado com a morte do último homem, temos a morte como algo tão certo quanto a incerteza do instante da sua ocorrência.
Incerteza da qual não participam da mesma forma Abraão e seu filho, ao caminharem para o monte onde Isaac será sacrificado (4) em honra de um deus sanguinário. Quando Abraão toma Isaac pela mão para iniciar sua jornada é como se uma voz anunciasse: ”homem morto andando!”, Pois o caminho que Isaac faz até o monte Moriá, é o caminho de um homem morto. Abraão sabe que Isaac vai morrer, mas Isaac não sabe disto, é a incerteza do instante da morte de um, que tem a certeza do instante da morte do outro, que irá tornar o caminho tão angustiante apenas para aquele que conduz o outro ao encontro do destino.
Incerteza da qual participamos de formas diferentes todos nós. É por motivos aparentemente diferentes que caminhamos todos: o condenado vai resgatar (?) a sua dívida frente ao Estado e Abraão vai segundo Kierkegaard (5) provar a sua fé, a “mais alta paixão de todo homem” acreditando no absurdo, e nós caminhamos segundo nossos personalíssimos propósitos. Uma caminhada que começou quando nascemos, mas que inclui, entre todos os caminhos, um (pequeno) trecho que não sabemos quando começaremos a trilhar. Pois a voz que falou “homem morto andando!”, para todos, (guardas e condenado), apenas falou ao ouvido de Abraão. Donde concluímos que a voz fala algumas vezes para um e outras vezes para todos. Esta voz ao falar para o médico, dá a certeza do instante do paciente terminal, ao falar para o assassino dá a certeza do instante da vítima.
Participamos de formas diferentes das mesmas incertezas. Com a incerteza do instante, enquanto não se converte em certeza, convivemos todos nós, este o ponto que de comum temos todos com o condenado, os guardas, Isaac, Abraão, médico, paciente, assassino e vítima. Sabe o seu instante o condenado, os guardas sabem o instante do condenado, mas não sabem (cada um) o seu próprio. Isaac não sabe o seu instante e Abraão sabe o instante de Isaac, mas não o seu próprio. Do nosso instante sabemos apenas que acontecerá, mas não sabemos quando.
Para tempos diferentes de diferentes pessoas uma idêntica certeza...
Enquanto isto, sem nome melhor, chamamos essa incerteza do instante de viver. Entretanto, um dia uma voz falará ao nosso ouvido, retirando nosso nome do rol dos vivos e anunciando a certeza do (nosso) instante, um dia nós, (sim, todos nós), ouviremos o anúncio:
“Homem morto andando!”
E caminharemos para o nosso destino.

PARA FAZER (ALGUM) SENTIDO...
Este trecho, melhormente modificado, fazia parte de uma monografia abandonada que quase virou livro. Vejam do que o mundo se livrou.. Aqui apenas a parte mínima do -perdão pelo óbvio - quase sacrifício de Abraão.
O mote original tratava da fé em Kierkegaard e a relação das ordens diretas do divino com três figuras bíblicas: Abraão, Jó e Jesus. Abraão e a ordem mais absurda recebida por um pai: matar o próprio filho; Jó e seu castigo quíntuplo, sem nenhuma razão válida - exceto servir de objeto de aposta entre Deus e o Diabo - e Jesus que ao ver sua hora chegando, aceitou seu destino com ressalvas (Mt 26.39) e reclamou do abandono (Mt 27.46).
PEGUEI LÁ NO ALMOXARIFADO...
(1) Algo como “Salve, César, os que vão morrer te saúdam”. Tomei como base o Suetônio em “A vida dos césares”, esta expressão está em Claudius XXI, originalmente seria “Ave, imperator, morituri te salutant”.
(2) Literalmente: “homem morto”.
(3) Literalmente: “homem morto andando!”. Para este costume, conferir:
(a) “Dead man walking!”, filme de Tim Robbins (1995), em tupiniquês nomeado: “Os últimos passos de um homem”. Baseado em um livro da freira Helen Prejean.
(b) “The green mile”, novela de Stephen King aqui versionada como “À espera de um milagre”. No livro o narrador chama tal costume de “supostamente tradicional”. Rendeu um filme de Frank Darabont (1999).
(4) Conferir Gn 22.2-19. A versão do Almeida anota indistintamente “terra” e “monte” para o local do sacrifício. Na verdade Moriá é um monte.
(5) Kierkegaard em "Temor e Tremor”. Usei a versão de “Os Pensadores”, 2 ed.


(*) Contatos imediatos: bjfranco4000@yahoo.com.br

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

ANATOMIA DE UM TEXTO

Por Enoque Portes

Este texto trata-se de crítica feita a partir da ‘Interpretação da Legenda do Lobo de Gubio’ escrita por Pablo Barros. O autor desenvolveu sua ‘interpretação’ com base na obra de Arcângelo Buzzi ‘Introdução ao pensar’ (1972).

1º.Observando este texto, deve-se ressaltar o louvável propósito do autor de tratar dum tão intrincado objeto quanto à discussão acerca do mito. Ao verificarem-se as linhas de raciocínio, constata-se que o texto é deveras promissor, devendo alguns aspectos de sua estrutura e argumentação serem analisados no escopo de um melhor proveito do tema e da própria intenção que, reitera-se, bastante louvável do autor.

Neste primeiro item tentar-se-á explicitar a respeito da estrutura do texto, bem como da coesão no corpo da argumentação, visando, como já exposto, aspectos estruturais, sendo o mérito do assunto discutido posteriormente.

Primeiro o autor procura traçar alguns aspectos que, de acordo com ele, são mais relevantes na obra por ele citada, ‘Introdução ao Pensar’ de Arcângelo Buzzi. Esta síntese foi exposta em forma de tópicos. Neste sentido, nenhum problema, afinal com a exposição dos tópicos o leitor espera naturalmente que estes sejam desenvolvidos durante o texto. Num segundo momento, o autor começa o desenvolvimento do texto por uma idéia retirada dos tópicos listados: a saber, o’ concreto’. Porém o autor não estende a discussão para além desta definição, e todos os elementos argumentativos listados anteriormente, não são apreciados. Surge a primeira lacuna na coesão das idéias propostas pelo autor. Para quem não leu a obra de Arcângelo Buzzi, não fica claro se a legenda do lobo de Gubio é discutida na obra. Assim, quando o autor passa a tratar deste mito especificamente, não se sabe se ele está sintetizando as idéias de Buzzi, ou se está tentando utilizar as idéias deste para desenvolver seu próprio raciocínio. Alias, não está claro no texto se o autor tenta usar a legenda do lobo para exemplificar as idéias de Buzzi, ou se procura dizer que a legenda não é um bom mito. Neste sentido, o autor primeiro expõe que falta à legenda o aspecto do ‘concreto’. Todavia, no discorrer do texto ele demonstra na própria legenda o conceito do ‘concreto’, intentando claramente exemplificar a definição deste termo acima exposta. Enfim, especificamente a respeito da estrutura deste texto, o que nota-se é que o autor, talvez conscientemente, desenvolveu seu texto fundando-se em tópicos, a observar-se a Não relação direta entre os parágrafos. Não há demérito em trabalhar por esse método. Mas é necessário que cada idéia listada tenha direta relação com o corpo argumentativo, seja esta idéia imanente ao texto. A leitura de um texto em forma de tópicos não é muito simples, sendo desta forma extremamente primado que cada tópico contemplado seja claramente continuidade coerente e coesa da argumentação. Para uma melhor compreensão deste texto, tendo em vista a qualidade da argumentação, faz-se necessária uma revisão na coerência e no desenvolvimento satisfatório das idéias listadas. O autor demonstrou possuir esta capacidade flexível para a argumentação, podendo-se deste modo supor que não lhe será trabalhoso, se primar pela alta estima e sobriedade de seu pensamento, considerar as questões aqui propostas.

2º.Os tópicos listados na primeira parte do texto referem-se a algumas definições sobre mito e suas variantes. As idéias aparecem, como observado, aleatórias. Parece que o autor quis aclamar o mito como parte essencial em detrimento da lógica e razão. Ele expõe idéias como: “Um povo sem mitos, por suposição, é um povo que perdeu o senso do concreto”; “A ciência e a técnica, ao duvidarem do concreto e ou quererem ultrapassá-lo, estão no limite da periculosidade;”.

As demais idéias que o autor retirou da obra de Buzzi são referentes à contraposição homem-mítico homem-racional, além da problematização mito versos razão. O autor enfatiza o aspecto unificador do mito. Ora, o mito como aspecto unificador, não desempenha esse papel no sentido de uma unificação ‘político-social’ como o texto parece afirmar. O mito é unificador, quando, em grandes massas populares, tem a simplicidade e a objetividade na sua narrativa para adentrar ao quotidiano das sociedades mais diversas, na medida em que sua narrativa é fléxil a quaisquer modificações culturais. A narrativa mítica em si mesma, não é nenhum pouco unificada. Ela apenas descreve fatos reais ou fantasiosos aglomerando-os de forma a proporcionar uma idéia mais ou menos clara de um conselho ou uma advertência. O ‘concreto’ no mito não é atinente à sua narrativa (sabendo que esta distancia-se largamente da objetividade) antes, o concreto mítico afirma-sena subjetividade do indivíduo que o absorve aplicando-o arbitrariamente a seu quotidiano. O mito é em todos os aspectos ilógico, do ponto de vista filosófico. Mesmo a filosofia jônica, com suas exposições em prosa e tão revolucionárias na Grécia da epopéia e da lírica, inda é estritamente firmada e advinda da narrativa mítica, já que suas argumentações firmam-se nas máximas das narrativas, apenas racionalizando-as (neste sentido um bom texto de apoio é a obra de Jean Pierre Vernant ‘mito e pensamento entre os gregos’ 1990).

O primeiro tópico listado pelo autor relativo ao mito como forma de pensar autônoma do pensar filosófico, não está apropriadamente desenvolvido durante o texto. Quando colocado este tópico primeiramente no texto, e sendo esta uma discussão tão profunda, o leitor invariavelmente espera que este aspecto seja relacionado com a legenda do lobo de gúbio, sendo esta legenda utilizada como objeto base de demonstração da autônoma lógica mítica. Este aspecto aliado à discussão homem-mítico homem-razão, são as idéias mais relevantes do ponto de vista argumentativo no texto. No entanto, estas idéias não são discutidas, e não se pode compreender o sentido destas no texto. O omem-mítico firma seu pensamento na autoridade das potestades superiores. Para ele a lógica reside no poder mais que humano dos deuses. Assim, a narrativa mítica, quando explica algum evento natural, não se preocupa com a verossimilhança da exposição, estando evidenciados os aspectos divinos da intervenção que os deuses constantemente exercem no mundo natural. Desta forma a narrativa mítica não é coesa nem tampouco racional, porquanto a unidade de seu corpo argumentativo não se dá pelas idéias expostas, antes, pela vontade divina.

No fim do texto, de forma estranha, o autor após discorrer sobre a legenda do lobo de gúbio especificamente, procura uma analogia com ela nos nossos dias. Esta tentativa é um tanto anacrônica e não é possível compreender sua inserção no texto. Para uma melhor absorção do que o autor pretendeu expor com a questão da violência na legenda e sua relação em nossos dias, parece faltar algum meio de ligação das idéias do autor, e este demonstra possuí-la, mas ao leitor não é possível assimilá-la.

Sem mais delongas, reiterando, é certo que as idéias do autor são louváveis, contudo carecem de relação entre si, e de desenvolvimento mais detido de alguns aspectos já listados nesta análise. Se o autor transformar a narrativa da legenda do lobo de gúbio em objeto de argumentação com os tópicos listados por ele no início de seu texto, e os contemplar todos, acertadamente o autor alcançará grande êxito em seu propósito, e seu texto será deveras mais absorvido, na medida em que como este desenvolve-se já provoca grande discussão e admiração pelo autor, a começar por esta análise.

Bibliografia:

BUZZI, R. A. Introdução ao Pensar: o ser, o conhecimento, a linguagem. Ed. Petrópolis: Vozes LTDA., 1972.

VERNANT, J. p. Mito e pensamento entre os gregos. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.




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segunda-feira, 3 de setembro de 2007

INTERPRETAÇÃO DA LEGENDA DO LOBO DE GÚBIO

PABLITO BARROS
barrospablito@gmail.com


Podemos resumir o capítulo sobre mito, no livro Introdução ao Pensar, de Arcângelo Buzzi, da seguinte maneira (pelo menos, a 1ª parte):

• O mito como forma autônoma de pensamento, distinta do conhecimento filosófico e científico;
• Diferenciação entre a medida do concreto (homem mítico) e a medida do cálculo (homem de ciência) projetando o concreto;
• Uma falsa vivência no discurso da ciência, nos tempos modernos, sem nos darmos conta da força que a fala mítica tem em nossa existência;
• Consiste (o mito) nas palavras que dizem o concreto;
• O mito como aspecto da existência dos povos, sua segurança. Firma-se um elo entre o homem com seus pares e o meio ambiente;
• “Um povo sem mitos, por suposição, é um povo que perdeu o senso do concreto”;
• A ciência e a técnica, ao duvidarem do concreto e/ou quererem ultrapassá-lo, estão no limite da periculosidade;
• O mito solidariza a todos, selvagens/civilizados e demais opostos, ao contrário da gramática e da lógica formal;
• Mito => aliança humana com a amplitude do concreto;
• Tempo mítico dos povos primitivos: nossa subjetividade (como concreto) sem a imposição violenta da objetividade;
• Exemplo desse tempo mítico: a legenda do lobo de Gúbio.
Antes de tratar desse mito(1) em especial, vou procurar explicar o conceito de concreto aqui bastante mencionado.
O que significa “viver na amplitude do concreto”?
O conceito filosófico da palavra concreto tem duas concepções bem distintas:
• “Diz-se da natureza apresentada por qualquer objeto de conhecimento singular, individual, passível de ser captado pelos sentidos”(2);
• “No pensamento hegeliano, que inverte a significação tradicional do termo, é aquilo que é efetivamente real em decorrência de sua universalidade, de seu caráter sintético passível de unificar uma multiplicidade de aspectos ou determinações, em oposição ao que é parcial, singular ou individual”(3).

A meu ver, a questão do mito elaborada pelo autor está bem de acordo com esse último, o sentido hegeliano. O mito unifica um povo, preserva a sua tradição, muitas vezes universal, como os mitos da religião; como a católica, por exemplo. Povo pressupõe diversas cabeças e concepções a respeito da vida e tudo mais. Uma multiplicidade de sentimentos. E da multiplicidade, regra básica dos primeiros filósofos,chegar a uma unidade. Unificar é a chave. Não existe individualidade no concreto mítico, não é uma coisa que se guarda para si. Aprendizado interior, sim. Mas no sentido do coletivo. Resumindo e simplificando, o concreto no mito seria “unifiquemos o real”...
No caso do lobo e da cidade de Gúbio, essa definição está bem presente. O olhar comum nos diz que a ferocidade do lobo era uma coisa inerente ao próprio e por isso se opunha simplesmente ao convívio, somente isso. E São Francisco de Assis, com seu sermão milagroso, “curou” o animal de sua bestialidade sem sentido. Convenhamos, bastante simplório e pobre para uma reflexão adequada. Como disse o autor, faltou o concreto. Faltou unificar aquilo que é efetivamente real. E as palavras-chave são: ferocidade, concordância e diálogo.
Na cidade de Gúbio, apareceu esse lobo, faminto e violento, que matava tanto animais como humanos, deixando a cidade em polvorosa. São Francisco, não dando ouvidos aos conselhos dos cidadãos dessa cidade, vai ao encontro do lobo, armado apenas de sua cruz. Evocando o poder de Jesus Cristo, acalma o lobo e o convence de que, estando com fome e sede, a cidade lhe dará seu sustento desde que não os ataque mais. E tudo se resolve.
O que isso quer dizer?
Todos, o povo e o lobo, estavam armados para a guerra. A violência estava mais que presente, em decorrência da ferocidade advinda do medo recíproco. A cidade teme as garras do lobo. O lobo teme as armas da cidade. A guerra é iminente. “O homem é o lobo do homem”, já disseram os filósofos Plauto e Hobbes. Todos temos medo do lobo do nosso interior. O medo (universal) real precisa ser problematizado e unificado a partir da multiplicidade do sujeito (o lobo e a cidade). O que São Francisco propôs então? Uma “terceira via”, onde não se será nem vítima nem algoz um do outro(4). Não combater ferocidade com ferocidade, mas inverter essa lógica e surpreender tanto os cidadãos quanto o lobo. Um “poder integrador ao invés do coercitivo”(5). Afinal, parece dizer ele, “violência gera violência”. Tudo em decorrência do diálogo, onde São Francisco argumenta a ação – ataques à cidade –, a causa – a fome – e a conseqüência – violência recíproca. Para esse diálogo com o lobo, São Francisco usará todos os recursos do concreto. É com o diálogo que se faz a transposição de um estado violento para um estado pacífico. O diálogo unificará o real. A concordância vem da promessa recíproca de não-violência, diante da resolução de ambas as partes. Concordância sim, como reconhecimento de que havia algo muito mais destrutivo nos seus corações do que o próprio lobo.
O mito pode ser facilmente transposto para os nossos dias. A violência, mais do que nunca, faz parte do cotidiano das pessoas. Cada vez mais se gasta em equipamentos de segurança. Tudo isso para nos protegermos do “lobo violento”: os excluídos da sociedade e as minorias étnicas. Os “lobos” moram agora nas periferias e favelas. Ou o nosso “lobo interior”, gerador de toda corrupção moral. Essa corrupção moral está em todos os âmbitos: social, político, econômico, etc.
A influência de São Francisco de Assis e a sua máxima de não-violência influenciaram nomes como Henry David Thoreau (com sua revolução pacífica em A Desobediência Civil) e também a revolução de Ghandi na Índia.

Notas
(1) A diferenciação entre mito e lenda, em diversos autores, é muito sutil; às vezes, nem sequer existe. Basicamente, mitos são de ordem geral, no tradicionalismo de um povo, enquanto as lendas possuem caráter local. Nesse caso de São Francisco de Assis, podemos considerar um mito.
(2) Ver HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Ed. Objetiva, Rio de Janeiro, 2001, p. 789.
(3) Idem.
(4) Ver PACE E BENE NONVIOLENCE SERVICE. A Não Violência Franciscana. Cap. 3, Intervenção não violenta, negociação e terceira via, p. 25-27. Disponível em www.unijui.tche.br/ambienteinteiro/Manual.pdf.
(5) Idem.
Marcadores: Buzzi, Ghandi, Hegel, Hobbes, mito, São Francisco, Thoreau


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segunda-feira, 27 de agosto de 2007

O SEGUNDO JULGAMENTO DE SÓCRATES

(OU A FILOSOFIA COMO PREPARAÇÃO PARA A MORTE)


Por BJFranco

Entre os vários temas discutidos no “Fédon”, um nos chama a atenção em especial por seu caráter tão inusitado quanto complexo. Trata-se do segundo julgamento ao qual Sócrates é submetido por seus próprios discípulos.
Sócrates, em um momento anterior, tratado em outro diálogo, (“A defesa de Sócrates”), foi julgado e condenado à morte. E é na condição de condenado, prestes a cumprir a sentença que lhe foi imposta, que Sócrates se vê, outra vez, na condição de acusado. Mas agora é outra a acusação e são outros os acusadores, bem como só pode ser outra a condenação (caso ocorra).
Julgado e condenado que foi pela forma como se conduziu em vida, agora Sócrates é julgado por sua atitude perante a morte. Aos discípulos que o assistem nos momentos que antecedem a ingestão do veneno, Sócrates transmite um desprendimento, uma tranqüilidade, um apaziguamento tal que os discípulos entendem como sendo um desprezo pela vida e até um desejo pela morte.
Assim sendo, a acusação toma forma e sentido, é de sentir desprezo pela vida que os discípulos acusam Sócrates, é este o motivo do seu segundo julgamento.
Aceitando-se que a vida é um dom dos deuses, concedido aos homens, não podem, (os homens), dela dispor. A disposição da vida, o seu abandono, não é próprio do homem, visto que a vida pertence aos deuses. Desta forma, abandonar a vida de moto próprio, é abandonar os deuses. Outra implicação, que aparece, é o abandono dos amigos, dos entes queridos e, no caso particular de Sócrates, dos seus discípulos.
Ao aproximar-se da morte, Sócrates afasta-se dos discípulos e o fato de não manifestar nenhum pesar, mostra, no entender de Símias, o seu desprezo pela vida.
Símias estranha o fato de Sócrates suportar a proximidade da morte “sem muito pesar”; esta acusação é a primeira a ser discutida por Sócrates.
Sócrates se dispõe a realizar uma defesa “mais convincente” da que apresentou diante dos juízes. Considerando o resultado do primeiro julgamento, de todo desfavorável, Sócrates, neste segundo julgamento, começa admitindo que fará neste caso uma defesa bem melhor daquela realizada anteriormente.
Ao início existe um acordo no que diz respeito ao que seja a morte. Sócrates entende, e os discípulos concordam com isso, que a morte é a separação da alma do corpo. Segue-se que os filósofos são homens raros e de tal espécie que buscam os assuntos da alma e não do corpo. Mas o corpo, percebendo o mundo apenas através dos sentidos, nos engana, não nos deixando conhecer a verdadeira sabedoria.
Desta forma, o filósofo busca a sabedoria afastando-se das coisas do corpo, mas tal afastamento não é completo, não chega a constituir uma ruptura; visto que a cisão completa entre corpo e alma vem a ser a própria morte.
Sócrates em várias oportunidades refere-se a este afastamento entre a alma e o corpo e diz que ele deve ser o maior possível. As possibilidades de atingir a realidade das coisas estão ligadas ao que podemos perceber através da alma, mediante um isolamento nela mesma. Com o pensamento e só por meio dele, podemos atingir ao verdadeiro eu, mas ainda aí o corpo se nos apresenta como um entrave.

O afastamento total entre alma e corpo passaria então a funcionar como uma libertação, como a real possibilidade do filósofo conhecer as coisas reais sem os entraves causados pelo corpo. Mas esse afastamento não deve ser buscado através do suicídio, nem encarado de forma desesperadora, como se a morte fosse o maior dos males. No caso primeiro, a impropriedade do suicídio reside no fato de que a vida não nos pertence é um dom que os deuses nos concederam, não nos cabe dispor de tal dom. No segundo caso, não cabe ao filósofo desesperar-se diante da possibilidade de atingir aquilo que ele tanto buscou durante toda a sua vida terrena, ou seja: o maior afastamento possível entre a alma e o corpo.
A conduta do filósofo durante a vida é que irá determinar a sua atitude perante a morte, e a filosofia é a forma através da qual ele deve se preparar para fazer frente a este acontecimento. Procurando afastar o mais possível a alma do corpo, vivendo com a eterna busca da sabedoria podemos aprender a não ter receio de morrer, esta é a grande lição que Sócrates nos apresenta, através do seu modelo de vida e do seu exemplo de morte.


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SOBRE O SEGUNDO JULGAMENTO DE SÓCRATES
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