sábado, 10 de novembro de 2007

“Homem morto andando!”



(Variações para um tema de Kierkegaard)
por bjfranco (*)
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Qual um resquício da fatalista saudação dos gladiadores na Roma antiga, "Ave Caesar, morituri te salutant” (1), que chega até nossos dias, alguma forma de cerimonial costuma acompanhar aqueles que têm um tempo marcado e certo para o derradeiro encontro com as Parcas. Ainda hoje, nos Estados Unidos, nos lugares que aplicam a pena de morte, um ritual acompanha os condenados à morte, a partir do momento que encerra todas as chances jurídicas de suspensão da execução. Começam então alguns procedimentos: caso o condenado seja religioso, será acompanhado nos seus últimos momentos por um representante da sua religião, (um padre ou uma freira, se católico, um pastor, se protestante, etc.). Também terá direito a receber a última visita dos seus familiares bem como poderá escolher o cardápio da sua última refeição.
Mas existe uma contrapartida nisto, algumas prisões permitem a presença dos parentes das vitimas do condenado - vingança, doce vingança - entre as testemunhas da execução. Todavia não é este o aspecto do ritual que nos interessa, certamente há algo de estranho nesses “privilégios” e “concessões” de última hora, pois sobrepujando os agentes que concedem tal tratamento e o condenado que o recebe, existe um ponto tão comum quanto trágico: a certeza da morte que ocorrerá em alguns momentos mais.
Mas ainda não é (só) este o ponto.
O que realmente nos toca, é a parte do ritual que ocorre quando o condenado vai ser conduzido da sua cela até o local da execução, pois deste momento em diante ele passa a ser tratado apenas pela expressão “dead man” (2). É aí que o condenado morre antecipadamente, pois o nome – aquilo que nos conta entre os vivos - é algo que o condenado não tem mais, ele ainda não é tecnicamente, um morto, mas já é um “dead man”. Chegada a hora da execução o condenado levanta-se e um guarda da prisão, emulando o papel de arauto, anuncia: “dead man walking!” (3).
E o condenado caminha para a morte.
Mas não teríamos nós, (todos nós), algo em comum com o “dead man”? Mesmo que o sorites que conclui com o famosíssimo “todos os homens são mortais” só possa ser provado com a morte do último homem, temos a morte como algo tão certo quanto a incerteza do instante da sua ocorrência.
Incerteza da qual não participam da mesma forma Abraão e seu filho, ao caminharem para o monte onde Isaac será sacrificado (4) em honra de um deus sanguinário. Quando Abraão toma Isaac pela mão para iniciar sua jornada é como se uma voz anunciasse: ”homem morto andando!”, Pois o caminho que Isaac faz até o monte Moriá, é o caminho de um homem morto. Abraão sabe que Isaac vai morrer, mas Isaac não sabe disto, é a incerteza do instante da morte de um, que tem a certeza do instante da morte do outro, que irá tornar o caminho tão angustiante apenas para aquele que conduz o outro ao encontro do destino.
Incerteza da qual participamos de formas diferentes todos nós. É por motivos aparentemente diferentes que caminhamos todos: o condenado vai resgatar (?) a sua dívida frente ao Estado e Abraão vai segundo Kierkegaard (5) provar a sua fé, a “mais alta paixão de todo homem” acreditando no absurdo, e nós caminhamos segundo nossos personalíssimos propósitos. Uma caminhada que começou quando nascemos, mas que inclui, entre todos os caminhos, um (pequeno) trecho que não sabemos quando começaremos a trilhar. Pois a voz que falou “homem morto andando!”, para todos, (guardas e condenado), apenas falou ao ouvido de Abraão. Donde concluímos que a voz fala algumas vezes para um e outras vezes para todos. Esta voz ao falar para o médico, dá a certeza do instante do paciente terminal, ao falar para o assassino dá a certeza do instante da vítima.
Participamos de formas diferentes das mesmas incertezas. Com a incerteza do instante, enquanto não se converte em certeza, convivemos todos nós, este o ponto que de comum temos todos com o condenado, os guardas, Isaac, Abraão, médico, paciente, assassino e vítima. Sabe o seu instante o condenado, os guardas sabem o instante do condenado, mas não sabem (cada um) o seu próprio. Isaac não sabe o seu instante e Abraão sabe o instante de Isaac, mas não o seu próprio. Do nosso instante sabemos apenas que acontecerá, mas não sabemos quando.
Para tempos diferentes de diferentes pessoas uma idêntica certeza...
Enquanto isto, sem nome melhor, chamamos essa incerteza do instante de viver. Entretanto, um dia uma voz falará ao nosso ouvido, retirando nosso nome do rol dos vivos e anunciando a certeza do (nosso) instante, um dia nós, (sim, todos nós), ouviremos o anúncio:
“Homem morto andando!”
E caminharemos para o nosso destino.

PARA FAZER (ALGUM) SENTIDO...
Este trecho, melhormente modificado, fazia parte de uma monografia abandonada que quase virou livro. Vejam do que o mundo se livrou.. Aqui apenas a parte mínima do -perdão pelo óbvio - quase sacrifício de Abraão.
O mote original tratava da fé em Kierkegaard e a relação das ordens diretas do divino com três figuras bíblicas: Abraão, Jó e Jesus. Abraão e a ordem mais absurda recebida por um pai: matar o próprio filho; Jó e seu castigo quíntuplo, sem nenhuma razão válida - exceto servir de objeto de aposta entre Deus e o Diabo - e Jesus que ao ver sua hora chegando, aceitou seu destino com ressalvas (Mt 26.39) e reclamou do abandono (Mt 27.46).
PEGUEI LÁ NO ALMOXARIFADO...
(1) Algo como “Salve, César, os que vão morrer te saúdam”. Tomei como base o Suetônio em “A vida dos césares”, esta expressão está em Claudius XXI, originalmente seria “Ave, imperator, morituri te salutant”.
(2) Literalmente: “homem morto”.
(3) Literalmente: “homem morto andando!”. Para este costume, conferir:
(a) “Dead man walking!”, filme de Tim Robbins (1995), em tupiniquês nomeado: “Os últimos passos de um homem”. Baseado em um livro da freira Helen Prejean.
(b) “The green mile”, novela de Stephen King aqui versionada como “À espera de um milagre”. No livro o narrador chama tal costume de “supostamente tradicional”. Rendeu um filme de Frank Darabont (1999).
(4) Conferir Gn 22.2-19. A versão do Almeida anota indistintamente “terra” e “monte” para o local do sacrifício. Na verdade Moriá é um monte.
(5) Kierkegaard em "Temor e Tremor”. Usei a versão de “Os Pensadores”, 2 ed.


(*) Contatos imediatos: bjfranco4000@yahoo.com.br

3 comentários:

Unknown disse...

Amei o q vc escreve...mas principalmente;amei a maneira com q vc escreve...poderia passar a noite toda lendo mais e mais...e mais....
Parabéns...vc é ótimo!

Silverio,A. disse...

“Seu lamento por aqueles não merece o seu pesar. O sábio nunca se lamenta nem pelos vivos e nem pelos mortos”. (2.11)

O Bhagavad-Gita, o som de Deus.

-Salve!

A salada "filosofia + religião" costuma produzir um vinagrete de misticismo do qual não podemos nos furtar.
Muito bom o texto, embora excessivamente corajoso.

SOCIOLOGIA NO LANCHE disse...

Nunca havia me dado conta de que Jesus, igual a qualquer mortal, também lamentou o abandono de seu pai. Parabéns e obrigado. Gostei.