segunda-feira, 3 de setembro de 2007

INTERPRETAÇÃO DA LEGENDA DO LOBO DE GÚBIO

PABLITO BARROS
barrospablito@gmail.com


Podemos resumir o capítulo sobre mito, no livro Introdução ao Pensar, de Arcângelo Buzzi, da seguinte maneira (pelo menos, a 1ª parte):

• O mito como forma autônoma de pensamento, distinta do conhecimento filosófico e científico;
• Diferenciação entre a medida do concreto (homem mítico) e a medida do cálculo (homem de ciência) projetando o concreto;
• Uma falsa vivência no discurso da ciência, nos tempos modernos, sem nos darmos conta da força que a fala mítica tem em nossa existência;
• Consiste (o mito) nas palavras que dizem o concreto;
• O mito como aspecto da existência dos povos, sua segurança. Firma-se um elo entre o homem com seus pares e o meio ambiente;
• “Um povo sem mitos, por suposição, é um povo que perdeu o senso do concreto”;
• A ciência e a técnica, ao duvidarem do concreto e/ou quererem ultrapassá-lo, estão no limite da periculosidade;
• O mito solidariza a todos, selvagens/civilizados e demais opostos, ao contrário da gramática e da lógica formal;
• Mito => aliança humana com a amplitude do concreto;
• Tempo mítico dos povos primitivos: nossa subjetividade (como concreto) sem a imposição violenta da objetividade;
• Exemplo desse tempo mítico: a legenda do lobo de Gúbio.
Antes de tratar desse mito(1) em especial, vou procurar explicar o conceito de concreto aqui bastante mencionado.
O que significa “viver na amplitude do concreto”?
O conceito filosófico da palavra concreto tem duas concepções bem distintas:
• “Diz-se da natureza apresentada por qualquer objeto de conhecimento singular, individual, passível de ser captado pelos sentidos”(2);
• “No pensamento hegeliano, que inverte a significação tradicional do termo, é aquilo que é efetivamente real em decorrência de sua universalidade, de seu caráter sintético passível de unificar uma multiplicidade de aspectos ou determinações, em oposição ao que é parcial, singular ou individual”(3).

A meu ver, a questão do mito elaborada pelo autor está bem de acordo com esse último, o sentido hegeliano. O mito unifica um povo, preserva a sua tradição, muitas vezes universal, como os mitos da religião; como a católica, por exemplo. Povo pressupõe diversas cabeças e concepções a respeito da vida e tudo mais. Uma multiplicidade de sentimentos. E da multiplicidade, regra básica dos primeiros filósofos,chegar a uma unidade. Unificar é a chave. Não existe individualidade no concreto mítico, não é uma coisa que se guarda para si. Aprendizado interior, sim. Mas no sentido do coletivo. Resumindo e simplificando, o concreto no mito seria “unifiquemos o real”...
No caso do lobo e da cidade de Gúbio, essa definição está bem presente. O olhar comum nos diz que a ferocidade do lobo era uma coisa inerente ao próprio e por isso se opunha simplesmente ao convívio, somente isso. E São Francisco de Assis, com seu sermão milagroso, “curou” o animal de sua bestialidade sem sentido. Convenhamos, bastante simplório e pobre para uma reflexão adequada. Como disse o autor, faltou o concreto. Faltou unificar aquilo que é efetivamente real. E as palavras-chave são: ferocidade, concordância e diálogo.
Na cidade de Gúbio, apareceu esse lobo, faminto e violento, que matava tanto animais como humanos, deixando a cidade em polvorosa. São Francisco, não dando ouvidos aos conselhos dos cidadãos dessa cidade, vai ao encontro do lobo, armado apenas de sua cruz. Evocando o poder de Jesus Cristo, acalma o lobo e o convence de que, estando com fome e sede, a cidade lhe dará seu sustento desde que não os ataque mais. E tudo se resolve.
O que isso quer dizer?
Todos, o povo e o lobo, estavam armados para a guerra. A violência estava mais que presente, em decorrência da ferocidade advinda do medo recíproco. A cidade teme as garras do lobo. O lobo teme as armas da cidade. A guerra é iminente. “O homem é o lobo do homem”, já disseram os filósofos Plauto e Hobbes. Todos temos medo do lobo do nosso interior. O medo (universal) real precisa ser problematizado e unificado a partir da multiplicidade do sujeito (o lobo e a cidade). O que São Francisco propôs então? Uma “terceira via”, onde não se será nem vítima nem algoz um do outro(4). Não combater ferocidade com ferocidade, mas inverter essa lógica e surpreender tanto os cidadãos quanto o lobo. Um “poder integrador ao invés do coercitivo”(5). Afinal, parece dizer ele, “violência gera violência”. Tudo em decorrência do diálogo, onde São Francisco argumenta a ação – ataques à cidade –, a causa – a fome – e a conseqüência – violência recíproca. Para esse diálogo com o lobo, São Francisco usará todos os recursos do concreto. É com o diálogo que se faz a transposição de um estado violento para um estado pacífico. O diálogo unificará o real. A concordância vem da promessa recíproca de não-violência, diante da resolução de ambas as partes. Concordância sim, como reconhecimento de que havia algo muito mais destrutivo nos seus corações do que o próprio lobo.
O mito pode ser facilmente transposto para os nossos dias. A violência, mais do que nunca, faz parte do cotidiano das pessoas. Cada vez mais se gasta em equipamentos de segurança. Tudo isso para nos protegermos do “lobo violento”: os excluídos da sociedade e as minorias étnicas. Os “lobos” moram agora nas periferias e favelas. Ou o nosso “lobo interior”, gerador de toda corrupção moral. Essa corrupção moral está em todos os âmbitos: social, político, econômico, etc.
A influência de São Francisco de Assis e a sua máxima de não-violência influenciaram nomes como Henry David Thoreau (com sua revolução pacífica em A Desobediência Civil) e também a revolução de Ghandi na Índia.

Notas
(1) A diferenciação entre mito e lenda, em diversos autores, é muito sutil; às vezes, nem sequer existe. Basicamente, mitos são de ordem geral, no tradicionalismo de um povo, enquanto as lendas possuem caráter local. Nesse caso de São Francisco de Assis, podemos considerar um mito.
(2) Ver HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Ed. Objetiva, Rio de Janeiro, 2001, p. 789.
(3) Idem.
(4) Ver PACE E BENE NONVIOLENCE SERVICE. A Não Violência Franciscana. Cap. 3, Intervenção não violenta, negociação e terceira via, p. 25-27. Disponível em www.unijui.tche.br/ambienteinteiro/Manual.pdf.
(5) Idem.
Marcadores: Buzzi, Ghandi, Hegel, Hobbes, mito, São Francisco, Thoreau


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2 comentários:

fr@nco400 disse...

Bom texto! Em especial destaco a analogia entres os "lobos" de ontem e de hoje, gostaria que o autor desenvolvesse mais esta parte,quem sabe, futuramente.

Pablito Barros disse...

Foi um resumo para a faculdade, que pelo visto acabei indo "longe demais"e não acabei dando os devidos retoques ou aprofundamento. O Terreno da filosofia é por demais pantanoso! ;-)